Nebra e Brane

Nebra e Brane

 

 

Eram adolescentes com a mesma idade: 14 anos, que nasceram no mesmo dia, estudavam na mesma escola e se odiavam. Nebra – negra - somente gostava de conviver com negros e achava que a sua raça era superior a branca. Brane – branca - apenas gostava de andar com brancos e achava que a própria raça era superior a negra.

Quase todas as vezes que se encontravam, acabavam brigando, batendo boca; uma vivia xingando e desmoralizando a outra por causa da diferença racial. Mas um acontecimento mudou a vida e o modo de pensar das duas:

Num final de semana santa, a escola delas foi acampar: uma excursão para conhecer uma região montanhosa. Nebra e Brane, assim como na escola, evitavam-se. As barracas das duas ficavam distantes propositalmente, mas, quando se encontravam, acabavam brigando.

Na noite da madrugada da sexta-feira, todos os alunos estavam reunidos próximos a uma imensa fogueira ouvindo histórias e lendas contadas pelo guia - um jovem índio chamado Petreno - que vivia e nasceu naquela região. Uma das lendas contadas por ele foi a da caverna viva, a qual ficava a 100 metros de altura na montanha mais alta e a 2 quilômetros do acampamento. Ele disse que, lá, acontecem coisas muito estranhas: espíritos de índios viviam cantando, tochas acendiam e apagavam repentinamente, tinha uma mulher-coruja, uma lagoa-fantasma a qual surgia do nada e que a caverna tinha vida.

Depois de ouvir as histórias, todo mundo, assustado, foi dormir; mas Brane assim como Nebra não conseguiam; tinham insônia, pensando nos mistérios da caverna viva. Enquanto todos dormiam, Brane, por estar muito curiosa, foi até a caverna, levando uma pequena lanterna. Coincidentemente, Nebra fez a mesma coisa da outra: foi até lá também, 5 minutos depois da ida de Brane, que corria a caminho da gruta; já Nebra andava.

A caverna viva era toda escura, a entrada tinha formato de rosto de lobo; dentro era cheio de teias de aranha e desenhos de bichos nas paredes e tinha sons de corujas e morcegos.

Ao chegar à caverna, cansada, Brane ficou apreensiva imediatamente, as mãos tremiam, mas a curiosidade de conhecer aquele local era maior que tudo naquele instante. Andando, com a lanterna acesa, gritava: - Tem alguém aí? Espíritos cadê vocês? - De repente, do nada, surgiu uma lagoa na frente dela: a lagoa-fantasma. Como estava cansada e com sede, sentou-se nas margens, observando-a e pondo as mãos dentro da água cristalina onde os peixes que brilhavam podiam ser vistos.

Nebra chegou 15 minutos depois; estava tão curiosa e apreensiva quanto Brane; e via pegadas recentes, que eram da outra. Nebra sabia que poderia ter gente lá naquele instante; mesmo assim, foi adiante, já mexendo a lanterna para todos os lados. De tanto andar, acabou vendo uma luz, e passou a andar mais devagar em direção a ela. Vendo que a luz vinha de uma lanterna, gritou: - Oi! Tem alguém aí? Quem é você? Tudo bem?

Brane, sentada nas margens, ficou assustada com aquela voz, eco que vinha de longe. Logo se levantou; nervosa, não respondia nada, e com medo, ficava só olhando em direção à luz da lanterna de Nebra, que se aproximava. E no momento em que as duas se viram, o medo delas se foi, mas começaram a bater boca, uma xingando a outra; e em seguida, agrediam-se fisicamente; rolavam no chão, agarradas, e acabaram caindo juntas na lagoa.

Como as lanternas estavam nas mãos delas, arruinaram-se ao caírem na água: ficou tudo escuro, não dava para se ver nada. As duas pararam de brigar, entraram em desespero, saindo da lagoa. Os rostos delas coçavam - uma coceira que nunca tinham sentido antes. Apesar de tanta coceira, tentavam acender as lanternas, que não ligavam. Nebra mudou a posição das pilhas da própria lanterna, mas não deu em nada; a lanterna não funcionou; e pediu, de forma grosseira, para que Brane fizesse a mesma coisa; Brane tentou, mas a lanterna também não ligou. A coceira misteriosa delas sumiu; e ficaram sentadas nas margens, em silêncio, pensando no que iam fazer para sair dali. Nebra teve uma idéia: pediu as pilhas da lanterna da outra:

- Brane, dê-me as suas pilhas para eu testar na minha lanterna; e eu daria as minhas para você testar na sua, para ver no que vai dar.

Por um instante, esqueciam as diferenças e se entendiam. No troca-troca de pilhas, das quatro, só duas serviam: uma pilha era de Brane, a outra era de Nebra. As duas tanto serviam para lanterna de Brane como para a de Nebra. E as pilhas foram para lanterna de Nebra, após terem tirado no par ou ímpar. Mas, assim que a lanterna ligou, começaram a brigar novamente: discutiam, trocavam insultos e argumentos para ver quem ficaria com a lanterna (embora já tivessem tirado no par ou ímpar), uma já xingava a outra.

De repente, ouviram uma voz, sussurros de mulher que fizeram com que parassem de brigar. Uma das garotas: Brane, achava que era a mulher-coruja. – Oh! Acho que é a mulher-coruja – sussurrou ela. - Logo, as duas passaram a correr de mãos dadas, gritando, em direção à saída da caverna; mas Nebra tropeçou, derrubando a lanterna, que acabou quebrando-se; e as vozes sumiram. Como não viam nada, passaram a andar lentamente em linha reta. Conversando e caminhando, tiveram outra desavença e começaram a bater boca; e os sussurros recomeçaram; então, as duas, inconscientemente, deram-se as mãos novamente. As mãos dadas fizeram com que as tochas acendessem e com que os sussurros sumissem; mas as garotas não sabiam o porquê das tochas estarem acesas e do sumiço dos sussurros. Como a caverna estava iluminada naquele instante, corriam como nunca tinham corrido, em direção à saída.

Ao saírem de lá, viram que estavam de mãos dadas, e logo largaram as mãos; e a caverna voltou a ficar escura; e cuspiam no chão, uma com nojo da outra, e passaram a bater boca novamente; e aqueles sussurros voltaram. Como das outras vezes, correram, e desceram rapidamente a montanha. Ao descerem, iam correndo por caminhos diferentes em direção ao acampamento. Apesar de terem ido por caminhos diferentes, chegaram ao mesmo tempo, assustadas. Sem fazer barulho, cuidadosamente, cada uma foi para sua barraca dormindo algumas horas depois.

Já no dia seguinte, as duas foram as últimas a se acordar. Quando se acordaram, tiveram uma enorme surpresa ao se olharem no espelho:

Nebra tinha pequenas manchas brancas no lado esquerdo do rosto; e Brane, pequenas manchas pretas no lado direito.

As duas ficaram bastante deprimidas, mal saíam da barraca, com vergonha das manchas. Nas raras vezes que saíam, sempre se encontravam e acabavam brigando. E depois de cada briga, 1 hora depois, nasciam mais manchas nos rostos de cada uma.

As primeiras manchas, quase ninguém percebeu, ficava difícil de perceber, mas depois, os rostos delas ficaram repletos de manchas: O lado direito do rosto de Brane estava cheio de manchas pretas; e o esquerdo de Nebra, cheio de manchas brancas. Eram tantas manchas, que as duas passaram a usar lenço para cobrir todo o rosto.

Os hábitos delas eram tão parecidos: sempre andavam sozinhas, eram as últimas a dormir e a se acordar, usavam lenços e evitavam os outros. Os colegas debochavam das duas e já comentavam que mais pareciam irmãs e esquisitas.

Em momentos diferentes, o jovem índio perguntou a cada uma o motivo de usar lenço para cobrir o rosto. E elas explicaram quase a mesma coisa, contaram tudo o que se passou na caverna: o surgimento da lagoa; que depois de ter ido a caverna viva, as manchas apareceram no dia seguinte.

Como se insultavam demais, uma discriminando a outra, o índio percebeu que as duas tinham brigado e caído na lagoa da caverna, a qual fez com as manchas aparecessem.

Um dia antes do término da excursão, de noite, para falar às duas, acabar com as manchas e as desavenças entre elas, o jovem índio reuniu todos do acampamento, novamente, para contar mais sobre as lendas da caverna viva. Falou duma maldição: que se duas pessoas brigarem entre si e caírem, em seguida, na lagoa-fantasma, nascem-se manchas nos corpos; que as águas fazem nascer no corpo o que a pessoa mais odeia; e que para se livrar da maldição, a pessoa tem de tomar banho na lagoa com a pessoa de antes, refletindo, meditando à procura dos males e erros; e que as águas de lá, também, lavam a alma.

Logo que o índio terminou de contar, todo mundo foi dormir, exceto as duas, que estavam muito ansiosas. Brane foi até a barraca de Nebra, para convidá-la a ir até a lagoa, para se livrarem da maldição - das manchas.

- Nebra, vamos atrás da lagoa da caverna viva, para tentarmos nos livrar da maldição? Eu sei e você também deve saber a razão de usarmos lenço no rosto. Eu não gosto de você nem você de mim, mas precisamos nos unir se quisermos nos livrar das manchas – sussurrou Brane.

- Vou com você sim, mas não fique perto de mim – resmungou Nebra, sem olhar para a outra.

E foram até a caverna, sem brigar, mas não se olhavam. Dessa vez, cada uma levava duas lanternas. Ao caminharem por aquele cerrado, sentiam que alguém estava seguindo-as ao ouvirem passos. Gritavam se tinha alguém, mas ninguém respondia; mesmo assim, foram adiante, assustadas, olhando de vez em quando para trás.

E quando avistaram a caverna, foram correndo até a mesma; subiam a montanha rapidamente. Já lá dentro, andavam, apreensivas, à procura da lagoa, que não aparecia e só apareceu depois que as duas gritaram juntas: - Lagoa!

No momento em que viram a lagoa, logo tiraram o lenço, atirando-se na água, de roupa; e ficaram lá pensativas, tomando banho, meditando, nadando, refletindo, tentando lavar a alma, para se livrar das manchas. Mas não se falavam nem se olhavam, enquanto as lanternas ficavam na margem iluminando-as. E assim que saíram da lagoa, uma perguntou a outra: - As manchas do meu rosto saíram?

- Não. Puxa! – responderam as garotas.

- O que faremos? O que faremos para se livrar dessa maldição? – perguntaram-se. - E começaram a chorar, desesperadas, quase sem esperanças. Mas uma voz iluminada surgiu para elas:

- Todo mundo tem preto e branco em si. Deus deu para todos um pouco de cada cor. Todo branco tem um pouco de preto: sobrancelhas, cílios... E todo negro tem um pouco de branco: as palmas das mãos, unhas... Deus deu um pouco de cada para mostrar que nenhuma cor toma todo o corpo. Vocês! as duas! receberam o mesmo castigo. As manchas nos seus rostos são manchas dos seus interiores. De tanto desprezarem a cor alheia, acabaram sentindo-a bem na pele. Isso mostra que nenhuma de vocês é mais forte do que a outra e imune a nada. Vocês se lembram da última vez que estiveram aqui quando uma precisou da pilha da outra para funcionar uma lanterna? Quando vocês se deram as mãos, iluminavam caminhos; vocês acendiam tochas; uma precisou da outra para iluminar a caverna. A vida só funciona porque há diferenças, opostos. Vocês são como duas pilhas que fazem funcionar uma lanterna.

Aquela voz misteriosa sumiu repentinamente do mesmo jeito que tinha aparecido. – Quem está aí? Quem é? É algum espírito? – gritavam as duas ao mesmo tempo. Mas ninguém respondeu.

Logo ficaram iluminadas, refletiam bastante sobre tudo o que faziam: as brigas, discriminação, xingamentos, preconceitos. Sentiram que estavam totalmente erradas e acabaram abraçando-se, uma aceitando a outra. O abraço foi tão forte e com muito balanço, que acabaram caindo na lagoa. E ficaram ali, divertindo-se, sorrindo, como fossem velhas amigas. E ao passo que conversavam dentro d’água, as manchas desapareciam, mas as garotas nem sequer notavam. Após um certo tempo, nenhuma das duas tinha mais manchas.

Já fora d’água, uma comentou com a outra que as manchas desapareceram, mas se permanecessem, não teria vergonha delas. E nas margens, conversando, sentadas, ouviram aquela voz iluminada de antes: - Meninas! olhem a hora. - E foram juntas correndo para o acampamento dormir. Nem sequer perceberam que aquela voz era a do jovem índio e que foi ele quem as seguia quando foram juntas à caverna. Brane e Nebra se tornaram grandes amigas e fizeram seus grupinhos se unirem. Hoje, na escola não existe amizade maior que a delas.

 

 

Ruilendis