Beleza
Beleza - filha de Natureza
- foi enviada à Terra quando era um bebê, por uma
estrela cadente que a deixou num orfanato de uma cidade grande. Era muito
linda, tinha olhos dourados e sempre andava com franjas no rosto. Com o passar dos
anos, ficava mais linda, e tinha medo de conhecer o mundo: raramente, saía de
casa. Muitos homens já se sentiam atraídos por ela, pelos seus olhos
principalmente.
Desde criança, tinha o sonho de se casar com
um homem perfeito que tinha de ser lindo por fora e por dentro: doce,
carinhoso, atencioso, inteligente, romântico.
Beleza... já na
adolescência, ficava quase o tempo todo na janela à procura de homens lindos; e
o que ela achava lindo, chamava-o para uma conversa que era muito rápida; nem
sequer perguntava o nome dele, e, de imediato, sempre perguntava: - Você é
doce, carinhoso, atencioso, inteligente e romântico?
Quando ele não tinha todas essas qualidades,
ela o dispensava logo: aconteceu com cerca de 300 homens.
E ao completar 30 anos de
idade, funcionária do orfanato, entrou em desespero; ainda sem ter beijado um
homem (só beijaria se ele fosse perfeito).
Numa noite de inverno,
deitada numa cama dum quarto do orfanato, sozinha, rezava e gritava
inconscientemente: - Mãe! cadê você? Me ajude!
As preces eram tão
comoventes, que transcendiam chegando até os ouvidos de Natureza, que se
comoveu e foi visitá-la pela primeira vez; e brilhava como uma estrela na frente
de Beleza.
- Olá! filha.
Sinto que você está muito mal – falou baixinho Natureza.
- Quem é você? De onde você
veio? – perguntou Beleza, assustada.
- Eu sou Natureza, a sua
mãe. Vim para te ajudar. Ouvi suas preces.
- Se você é minha mãe, por
que me abandonou? Sinto raiva de você.
- Desculpe-me, filha. Eu
queria que você fosse muito feliz aqui na Terra. Se eu a deixasse lá no Olimpo, provavelmente, você iria sofrer bastante, pois lá,
você seria ignorada por muitos homens, já que você tem um defeito pra eles;
seus olhos dourados, que atraem tanto os homens daqui, são um
defeito no Olimpo. Lá, os olhos dourados
significam intolerância. Sinto muito por ter abandonado você. Eu achava que
estava fazendo a coisa certa ao enviá-la aqui para Terra. Perdoe-me!
- Olimpo?
– perguntou Beleza.
- É o lugar de onde vim,
onde moro e moram semideuses que alguns queriam
arrancar seus olhos, quando você ainda era um bebê.
- Eu não acredito nessa
história sua. Só acredito que você é minha mãe porque você é muita linda e se parece
muito comigo. Ainda não posso te perdoar; existe muita mágoa dentro de mim.
E... você deve ter muito poder né?
Você poderia realizar um desejo meu?
- Até que posso realizar
esse desejo, mas vai demorar 10 minutos para eu realizar. Terei que me concentrar
bastante. E esse é o tempo que me resta para permanecer aqui e é o tempo
suficiente para nós conversarmos.
- Não quero conversar!
- Se nós conversarmos, você
não vai querer esse desejo, que posso sentir.
Você quer isso ou conversar comigo?
- Eu não quero conversar;
quero o dom de ver o interior das pessoas; portanto, posso escolher um homem
perfeito para eu casar.
- Certo. Eu vou realizar
seu desejo porque você deseja tanto e será meu presente, mas saiba que você vai
se arrepender de ter pedido isso. Atenção...
assim que você dormir e acordar-se no dia seguinte, terá o dom. Mas você
vai pagar muito caro por isso.
- Pode ir
Depois de passar uma luz, durante 8 minutos,
para Beleza, Natureza desapareceu, e a filha adormeceu imediatamente. Acordando
na manhã seguinte, tinha o dom de ver o interior das pessoas.
No momento em que se acordou, sentiu algo
diferente dentro dela: era o dom de ver o interior. Ela estava muito confiante de
que ia arranjar um homem perfeito. E já no mesmo dia, ficou na janela
observando as pessoas passarem.
Mas Beleza teve uma enorme
surpresa: o interior de todas as pessoas que ela tinha visto era imperfeito. O
interior da maioria era muito feio, cheio de feridas... Ela se assustava com o
que via: a ignorância, a intolerância, ruindade, o preconceito, incompreensão,
ódio... Via feridas, uma maior que a outra. Todo mundo tinha ao menos uma
ferida.
Antes, ela até chamava
alguns homens (bonitos) para conversar, após ter recebido o dom, nem sequer os
chamava. O hábito de ficar na janela observando as pessoas, à procura de um
homem perfeito, durou 3 dias; e não nenhum homem era perfeito.
No quarto dia, desiludida,
mais solitária que antes, ao se ver no espelho, levou
um grande susto: depois de ver o próprio interior, passou a ter medo de
espelhos.
Por causa do dom, isolou-se ainda mais das
pessoas e foi morar numa floresta distante de cidades, numa parte isolada onde
não tinha humanos e ninguém visitava.
Os únicos companheiros dela
eram os animais, que tinham o interior que não podia ser visto por ela. E em
virtude de ter medo do próprio interior, não se olhava nas águas transparentes
dum rio onde ela bebia e pescava.
Passou 50 anos morando na
floresta, “sozinha”, com medo de ver gente, e, ainda com o desejo de encontrar
um homem (perfeito) e viver um amor.
E, sem nunca ter beijado
nem abraçado um homem, já bem velha, com 80 anos, preste a morrer, querendo se
livrar do dom, deitada no chão, rodeada por vários animais, sussurrando o nome
de Natureza, recebeu a visita de a mãe, que apareceu de repente, iluminando
ainda mais a caverna. Até os animais sentaram para ouvir as palavras de
Natureza:
- Filha, a Natureza sabe o
que faz. Se você quisesse só conversar antes comigo, você teria sido feliz. Eu
ia te aconselhar a encontrar um homem ideal para você, quase perfeito. Mas você
só pensava em um homem perfeito e queria ter o dom de ver o interior das
pessoas. Mesmo sabendo que você ia sofrer, eu lhe dei o dom, porque você me
pediu com o coração, eu lhe devia um presente e, principalmente, para te dar
uma lição. O interior de todas as pessoas é imperfeito e tem
feridas que demoram a ser curadas; são tantas, que levariam anos para
serem curadas; isso se a pessoa quiser curá-las. As feridas são curadas,
primeiramente, através da auto-reflexão. Ainda bem que o ser humano não pode
ver o interior do outro. Se pudesse ver, ninguém ficaria junto: não existiria o
contato físico, a amizade, a paixão, o amor, o namoro, a família, o lar, a
comunidade... Por isso não se pode ver o interior, que é bem mais imperfeito do
que o exterior. A beleza interior que você tanto procura é um tesouro raro no
baú escondido e enterrado na ilha do interior. O baú pode ser achado através da
procura incessante, diálogos... Todo mundo tem dentro desse baú ao menos um
ouro e poeira. Alguns têm muito ouro, outros, pouco. Muitos têm muita poeira,
outros, pouca. Nada, ninguém, é perfeito. Até eu sou imperfeita. A imperfeição
tem de existir
Depois das palavras de
Natureza, Beleza murmurou: - Mãe, obrigada pelas palavras. Eu... te... perdoou... - E, ela morreu. A
alma, adormecida, foi levada nos braços de Natureza, para ao Olimpo; já o corpo foi sugado pela terra; e após 3 dias,
nasceu ali mesmo uma flor: um amor-perfeito com pétalas douradas.
Ruilendis